Artistas Semi-Frustrados
O Grande Truque (Christopher Nolan, 2006)
(80)
(DVD; terceira vez)
*É um filme sobre fé, sobre negação e escapismo, sobre auto-ilusão, e sobre arteem geral. Conta a história de dois mágicos que se esforçam e auto-sacrificam para fazer truques “inexplicáveis”, e conta também a história da platéia, na virada do século, que enxerga tais truques como a esperança de que há algo no mundo além do normal, do banal, do sólido – como na cena onde Angiers e Borden visitam o mágico chinês, e Angiers pergunta porque alguém como tal chinês agüentaria toda a farsa que ele vivia só por causa de um truque. A resposta de Angiers é simples: “É pra escapar de tudo isso”, acompanhada de alguns socos na parede ao lado dele. Como diz Cutter ao juiz quando explicando o trabalho de tais mágicos: “Eles são mágicos. Eles vivem para enfeitar verdades simples, e as vezes brutais”. O “Homem Transportado” não é só um truque fantástico, ele é Deus (ou a idéia de Deus). E ao invés da platéia tentar decifrar o segredo por trás da magia – que é provavelmente simples, decepcionante – eles ignoram isso, e se deixam levar pelo espetáculo e pela adrenalina de presenciá-lo. Pra eles, não é só entretenimento, é um contra-argumento, em resposta aos avanços científicos da época (com Edison e Tesla espelhando a competição entre Angiers e Borden).
*A ciência chega para proporcionar explicações e banalizar a magia. Quando Angiers vê um campo de neve com centenas de lâmpadas o iluminando, ele sente o mesmo tipo de espanto que a sua platéia sente ao ver um de seus truques. Mas o assistente de Tesla logo explica que eles estão apenas usando condução de eletricidade de uma forma pouco conhecida. O propósito da máquina de Tesla, criada para Angiers, é simular a “magia” de Borden – Angiers não acredita que há uma explicação simples, “um dublê” como Cutter sugere, assim como criacionistas preferem enxergar uma "ilusão complexa" na Evolução ao invés da explicação lógica de Darwin. Estamos falando da famosa terceira lei de Arthur C. Clarke: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de mágica.” A simulação científica do truque de Borden é tão impressionante que, quando o financiador vê Angiers executando tal truque, diz para “Enfeitar um pouco. Dê razões suficientes para o público duvidar.” Porque é a dúvida que os trazem a fé. Revelando o truque de Angiers como algo real, a esperança da platéia (de Algo Mais) se dissipa.
*O filme – filmes em geral, mas especialmente um como esse – funciona da mesma forma. Ele luta contra o nosso cinismo, nossa vontade de ver o que estamos assistindo como “mentira” – como risadas da platéia, mantendo distância da obra. Mas Angiers e Borden sabem porque eles fazem sua arte. Como Angiers diz no final: “A platéia sabe a verdade. O mundo é simples, miserável. Sólido até o fim. Mas se você puder enganá-los, mesmo por um segundo, então você pode fazê-los pensar. Então você pode ver algo muito especial... O olhar em suas faces.” É um tema poderoso, profundo. Que os irmãos Nolan se deram o trabalho de construí-lo e estruturá-lo em volta de uma narrativa tão densa e instigante já um feito de deixar qualquer espectador com o queixo no chão – especialmente pessoas que tem a ambição de criar algo similar. A cena onde Borden estréia o “Homem Transportado” – quando vemos pela primeira vez algo realmente “incrível” – foi um dos melhores momentos cinematográficos de 2006.
Perfume: A História de um Assassino (Tom Tykwer, 2006)
(76)
(Cinema; duas vezes)
*Antes de mais nada, eu imploro que qualquer pessoa que venha a ler este blog (sim, os milhares de vocês) veja este filme urgentemente, enquanto ele ainda está no cinema. Não só porque o seu efeito provavelmente irá diminuir em DVD, mas porque é importante que filmes como esse atraiam platéias. É ousado, caro, e facilmente ridicularizado – eu já vi duas vezes, e a platéia riu em vários momentos (intencionais ou não) em ambas as sessões. Mas se você se deixar levar pela história absurda e pelo tom perturbador – uma mistura de sensacionalismo sombrio e humor negro – terá uma experiência memorável (não estávamos falando disso agora pouco?...).
*Tom Tykwer pegou o romance pervertido de Patrick Suskind e o adaptou como um aprendiz (consideravelmente mais energético) de Stanley Kubrick. O tom perturbador que eu mencionei acima é similar ao de Laranja Mecânica – outra história com um protagonista imoral e egocêntrico, onde vemos seus atos terríveis com um certo senso de humor – e ao de Barry Lyndon. A diferença, nesse caso, é que Grenouille (o jovem com o olfato mais potente do mundo) é um Artista. Comoem O Grande Truque , vemos durante boa parte do filme os sacrifícios (nesse caso, não pessoais) do protagonista em nome de sua arte. Como nasceu num lugar pútrido – o mercado de peixes de Londres – e sem a menor educação, ele não tem um senso de moralidade, e vê seus objetivos como tão importantes quanto qualquer coisa no mundo. Não tem também nenhuma auto-estima: nunca foi amado, ou apreciado, sempre tratado como um escravo ou um animal, menosprezado. Quando vai até uma caverna numa montanha longe da civilização, onde supostamente o seu olfato é relaxado pela falta de cheiros, ele percebe que ele mesmo não tem nenhum odor próprio. É um dos temas do filme: a idéia de que o artista nasce da união de um talento especial e da vontade universal de ser amado e apreciado.
*(SPOILERS do Final) Se a revelação da obra-prima de Bordenem O Grande Truque foi um dos melhores momentos de 2006, a revelação da obra-prima de Grenouille no final de Perfume será provavelmente o melhor momento de 2007. A cena da orgia não é transcendental apenas por mostrar o efeito orgástico da arte numa platéia, mas também por introduzir outro tema fascinante ao filme: a capacidade da arte em proporcionar um prazer tão grande que atravessa e cancela o nosso julgamento moral. Como o Matt Zoller Seitz disse na crítica dele, essa é como a história de Roman Polanski, de Michael Jackson, etc. O perdão instantâneo da multidão, e transformação de Grenouille de um prisioneiro odiado para uma Pop Star é tão impressionante e excitante que eu nem me importei com as risadas depreciativas que estavam vindo da platéia (filhos da mãe cinicamente tentando manter ditância... veja acima). E o filme prossegue com a sua metáfora, mostrando que a adoração da arte de Grenouille não significa uma adoração da sua essência, se é que ele tem uma. Mover as pessoas ao êxtase não é o suficiente para o seu objetivo (ao contrário de Angiers). (FIM dos SPOILERS)
*Em termos de invocar com sucesso a ambientação de época, Perfume vence O Grande Truque. Por mais que Nolan seja um diretor competente, e por mais que Truque seja o seu melhor trabalho até agora (em termos de direção), Tom Tykwer deixa cada plano vívido e quase icônico. A fotografia é maravilhosa e a direção de arte é uma das melhores que eu já vi. Ben Whishaw está perfeito no papel difícil do enigmático, calado e quase selvagem Grenouille. A trilha sonora é linda, e a narração de John Hurt (entre outras semelhanças a Dogville) está impecável. E é inacreditável que gastaram tanto (por volta de 60 milhões de dólares) dinheiro num filme tão obsceno e controverso.
*Na primeira vez que vi o filme, dei um 80. Minha vontade de rever o final foi tão enorme que eu decidi voltar ao cinema no dia seguinte, e baixei um pouco a nota. Mas o filme continua maravilhoso; as únicas falhas reais são o Dustin Hoffman escalado num papel completamente errado pra ele, e o ritmo arrastado de porções do segundo ato (que pesam bastante se você viu o filme à menos de 24 horas). De qualquer forma, assistam.
(80)
(DVD; terceira vez)
*É um filme sobre fé, sobre negação e escapismo, sobre auto-ilusão, e sobre arte
*A ciência chega para proporcionar explicações e banalizar a magia. Quando Angiers vê um campo de neve com centenas de lâmpadas o iluminando, ele sente o mesmo tipo de espanto que a sua platéia sente ao ver um de seus truques. Mas o assistente de Tesla logo explica que eles estão apenas usando condução de eletricidade de uma forma pouco conhecida. O propósito da máquina de Tesla, criada para Angiers, é simular a “magia” de Borden – Angiers não acredita que há uma explicação simples, “um dublê” como Cutter sugere, assim como criacionistas preferem enxergar uma "ilusão complexa" na Evolução ao invés da explicação lógica de Darwin. Estamos falando da famosa terceira lei de Arthur C. Clarke: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de mágica.” A simulação científica do truque de Borden é tão impressionante que, quando o financiador vê Angiers executando tal truque, diz para “Enfeitar um pouco. Dê razões suficientes para o público duvidar.” Porque é a dúvida que os trazem a fé. Revelando o truque de Angiers como algo real, a esperança da platéia (de Algo Mais) se dissipa.
*O filme – filmes em geral, mas especialmente um como esse – funciona da mesma forma. Ele luta contra o nosso cinismo, nossa vontade de ver o que estamos assistindo como “mentira” – como risadas da platéia, mantendo distância da obra. Mas Angiers e Borden sabem porque eles fazem sua arte. Como Angiers diz no final: “A platéia sabe a verdade. O mundo é simples, miserável. Sólido até o fim. Mas se você puder enganá-los, mesmo por um segundo, então você pode fazê-los pensar. Então você pode ver algo muito especial... O olhar em suas faces.” É um tema poderoso, profundo. Que os irmãos Nolan se deram o trabalho de construí-lo e estruturá-lo em volta de uma narrativa tão densa e instigante já um feito de deixar qualquer espectador com o queixo no chão – especialmente pessoas que tem a ambição de criar algo similar. A cena onde Borden estréia o “Homem Transportado” – quando vemos pela primeira vez algo realmente “incrível” – foi um dos melhores momentos cinematográficos de 2006.
Perfume: A História de um Assassino (Tom Tykwer, 2006)
(76)
(Cinema; duas vezes)
*Antes de mais nada, eu imploro que qualquer pessoa que venha a ler este blog (sim, os milhares de vocês) veja este filme urgentemente, enquanto ele ainda está no cinema. Não só porque o seu efeito provavelmente irá diminuir em DVD, mas porque é importante que filmes como esse atraiam platéias. É ousado, caro, e facilmente ridicularizado – eu já vi duas vezes, e a platéia riu em vários momentos (intencionais ou não) em ambas as sessões. Mas se você se deixar levar pela história absurda e pelo tom perturbador – uma mistura de sensacionalismo sombrio e humor negro – terá uma experiência memorável (não estávamos falando disso agora pouco?...).
*Tom Tykwer pegou o romance pervertido de Patrick Suskind e o adaptou como um aprendiz (consideravelmente mais energético) de Stanley Kubrick. O tom perturbador que eu mencionei acima é similar ao de Laranja Mecânica – outra história com um protagonista imoral e egocêntrico, onde vemos seus atos terríveis com um certo senso de humor – e ao de Barry Lyndon. A diferença, nesse caso, é que Grenouille (o jovem com o olfato mais potente do mundo) é um Artista. Como
*(SPOILERS do Final) Se a revelação da obra-prima de Borden
*Em termos de invocar com sucesso a ambientação de época, Perfume vence O Grande Truque. Por mais que Nolan seja um diretor competente, e por mais que Truque seja o seu melhor trabalho até agora (em termos de direção), Tom Tykwer deixa cada plano vívido e quase icônico. A fotografia é maravilhosa e a direção de arte é uma das melhores que eu já vi. Ben Whishaw está perfeito no papel difícil do enigmático, calado e quase selvagem Grenouille. A trilha sonora é linda, e a narração de John Hurt (entre outras semelhanças a Dogville) está impecável. E é inacreditável que gastaram tanto (por volta de 60 milhões de dólares) dinheiro num filme tão obsceno e controverso.
*Na primeira vez que vi o filme, dei um 80. Minha vontade de rever o final foi tão enorme que eu decidi voltar ao cinema no dia seguinte, e baixei um pouco a nota. Mas o filme continua maravilhoso; as únicas falhas reais são o Dustin Hoffman escalado num papel completamente errado pra ele, e o ritmo arrastado de porções do segundo ato (que pesam bastante se você viu o filme à menos de 24 horas). De qualquer forma, assistam.